O vento, em rajadas violentas e geladas, afastava tudo e todos da rua deserta. Não se via nem cão nem gato cá fora. Apenas o zumbir do vento na sua passagem pelas folhas das árvores ou uma porta ou outra a ranger ou a bater, de algum barraco desengonçado e velho.
No entanto, o ambiente dentro das casas era bem diferente: crianças brincavam, corriam, pregavam partidas, em salas bem iluminadas e quentes, indiferentes ao vento e ao frio do exterior. Era véspera de Natal!
Numa velha casa, nos limites da cidade, por entre os rugidos do vento, uma criança de nove anos, encostada a um canto, soluçava. Estava gelado e sentia-se desfalecer. Agarrava-se como podia a um casaco velho mas o casaco, de tão velho, quase que era mais frio que o próprio frio... Por entre os soluços, gemia com uma voz trémula, de desespero:
Rui -Mãe!..... Mãe!..... Eu quero a minha mãe!... Tenho tanto frio!... Mãe, ajuda-me!... Aquece-me, mãe!.... Estou cheio de frio!... Mãe, porque é que tu nunca mais vens?... Anda, que eu prometo que me porto sempre bem!... Vou fazer sempre tudo o que tu me mandares, vou...
(E os soluços abafam-lhe a voz)
Num desespero terrível, esta criança não compreendia o que se passava, não compreendia que mal podferia ter feito para merecer tamanho castigo.. Já tinha passado cerca de uma semana que vivia sózinho. Antes, vivia com a sua mãe. Não fosse a fome e ainda viveria com ela. Mas a necessidade levou-a a cometer um erro: encontrou uma loja com a porta aberta a meio da noite e entrou. Viu umas caixas com fruta e encheu rapidamente uma saca. Ia a sair e foi apanhada. Chamaram a polícia. Encontraram dentro da loja o dono com uma grande pancada na cabeça, desmaiado. Ela bem se defendeu dizendo que apenas tinha tirado a fruta e que não tinha feito mais nada, que pegou na fruta porque tinha de dar de comer ao seu filho, que o seu filho estava cheio de fome... Bem disse que nem sabia que o dono estava lá dentro desmaiado... Mas, ninguém acreditou nela. Não era daquela terra e, por isso, não era de confiar. Foi levada para a prisão e ali ficou a aguardar julgamento. As provas eram todas contra ela...
(Batem à porta)
Rui - Ui!... Quem é que está a bater à porta? Será a minha mãe? Não, não pode ser... Devo estar a sonhar... Ninguém bateu à porta! A minha mãe está presa e ninguém anda na rua com este frio... (e aconchega-se de novo ao casaco, tentando tapar o frio)
(Batem à porta novamente)
Rui - Bateram mesmo à porta... Será a polícia? Vão-me levar preso? Vão-me levar para um lar? Não, não quero ir! Tenho de me esconder. (esconde-se atrás de uns armários).
(Batem à porta novamente, mas com mais força)
Uma voz - Rui, Rui, abre a porta!
Rui - Cátia! E o Zé! Não percebo nada...
Zé - Rui, sai lá da frente e deixa-nos entrar! Olá Pedro! Também estás aqui?
Pedro - lá Cátia e Zé! Eu é que não contava convosco aqui...
Cátia - Olá Pedro! Rui, trago aqui um bacalhauzinho com batatas e tronchuda. Espero que ainda não tenhas jantado...
Rui - Jantado?!...
Zé - Ainda bem que ainda não jantaste! Assim, podemos comer todos juntos!
(batem novamente à porta)
Rui - Bateram à porta?
Pedro - Eu também ouvi...
Rui - Isto é muito estranho... Quem é?
Magda - É a Magda , o Fernando e a Rafaela.
(O Rui corre a abrir a porta)
Rafaela - Olá. Rui, parece que estás com frio...
Rui - É só um bocadinho... A casa está fria...
Fernando - Eu bem tinha razão! Ele oprecisava de um aquecedor! Magda, para outra vez, está calada, para não dizeres asneiras...
(Colocam o aquecedor a funcionar)
Rui - Agora já está mais quentinho... Que bom!
Magda - Agora, chega-te aqui à minha beira. Quero ver uma coisa... (O Rui vira-se e ela enfia-lhe um casaco de lã)
Rafaela - Fica-lhe mesmo bem! É à medida dele!
Magda - Gostas do casaco? Fui eu que o fiz!
Rui - É para mim? Não percebo...
Zé - Estás mesmo um "man", "meu"!
Pedro - Magda, vê lá se fazes outro para mim!
Rafela - Tu o que queres é conversa... Mas a Magda não quer nada contigo...
(Batem novamente à porta)
Fernando - Ainda vem mais alguém? Não tínhamos combinado nada...
Pedro - Não olhes para mim que eu não sei de nada!
Rafaela - Bem, então, já não percebo nada...
(batem novamente à porta)
Voz - Abram a porta! Polícia!
Rui - E agora? Não nos podemos esconder todos...
Pedro - Nós não sabemos o que eles querem...
Magda - Não pode ser nada de mal pois não fizemos mal a niguém...
Fernando - A polícia não serve só para prender pessoas. Vamos abrir a porta.
(Batem novamente)
Rui - Já vai, já vai!
(Rui abre a porta)
Polícia - Quem de vocês é o Rui?
Rui - Eu não dizia... É desta que vou preso...
Polícia - Então, és tu o Rui? Tenho de falar contigo.
Rafaela - Sr. polícia, não vê que o está a assustar. Páre lá com isso e vá-se embora!
Zé - O Rui não fez nada de mal!
Polícia - Eu sei... eu sei... Não é isso, eu não venho para lhe fazer mal!
Cátia - Então o que é que está aqui a fazer?
Polícia - É sobre a tua mãe, Rui.
Rui - O que é que se passa com a minha mãe? Já não chega prenderem-na e ela não ter feito nada?!...
Pedro - Rui, deixa falar o Sr. polícia.
Polícia - Bem, descobrimos que cometemos um erro terrível... Lembras-te do Sr. da loja que foi assaltada?
Rui - Foi por causa dele que a minha mãe foi presa...
Polícia - Pois é, prendemos a tua mae porque pensávamos que tinha sido ela quem tinha assaltado a loja.
Rui - Pois, e levaram-na presa...
Polícia - Pois foi... O Sr. da loja, o Sr. Luís, estava no hospital entre a vida e a morte. Mas, há um bocado, acordou.
Um comentário:
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